Voltei da viagem e meus pertences estavam no jardim: ‘Quer ficar? Vá para o porão.’ Então mudei para meu apartamento secreto e parei de pagar. Meia ano depois, bateram na minha porta pedindo abrigo.

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Olha, o meu nome é Leonor, tenho 29 anos, e há dois anos a minha vida deu uma volta que nunca esperei. Estava a viver num apartamento alugado em Lisboa, a trabalhar como programadora, a ganhar um bom ordenado e a aproveitar a minha independência. Até que os meus pais me ligaram com aquela conversa que ninguém quer ter.

“Leonor, precisamos falar”, disse a minha mãe ao telefone, com a voz cansada. “Podes vir cá hoje à noite?”

Quando cheguei a casa deles, em Cascais, os dois estavam sentados à mesa da cozinha com papéis espalhados por todo o lado. O meu pai parecia mais velho do que os seus 58 anos, e a minha mãe torcia as mãos como sempre fazia quando estava nervosa.

“O que se passa?”, perguntei, sentando-me à frente deles.

O meu pai tossiu antes de falar. “Tive de deixar o trabalho no mês passado. Os problemas nas costas pioraram, já não consigo fazer trabalhos de construção. Ando à procura de outra coisa, mas nada paga o suficiente.”

Fiquei com um nó no estômago. Sabia que o meu pai andava com problemas de saúde, mas não fazia ideia que estava assim tão mau.

“Não conseguimos pagar a prestação da casa”, continuou a minha mãe, com a voz a tremer ligeiramente. “Eu ainda trabalho no supermercado, mas é só meio período. Agora recebemos talvez 1100 euros por mês, e só a prestação são 1500.”

Foi então que me pediram para voltar a viver com eles e ajudar nos pagamentos. Não queriam perder a casa onde viviam há 20 anos. Olhei à volta, para a cozinha onde comia pequeno-almoço em pequena, para a sala onde víamos filmes juntos, para o quintal onde o meu pai me ensinou a andar de bicicleta.

Claro que disse que sim. “Eu ajudo.”

Então, desisti do meu apartamento e voltei para o meu quarto de infância. Foi estranho no início, mas montei o meu computador, arranjei uma boa ligação à internet e fiz dar certo. O meu trabalho era maioritariamente remoto. A solução acabou por funcionar melhor do que esperava. Ganhava bem como programadora—cerca de 70.000 euros por ano, mas o que realmente fazia diferença eram os bónus. Cada vez que um dos meus programas era vendido a uma grande empresa tecnológica, recebia uma percentagem. Em alguns meses, ganhava um extra de 8.000 ou 12.000 euros.

Usava o meu salário normal para pagar a prestação, contas, comida, seguro do carro e outras despesas da família. Não era um peso. Mas havia uma coisa que a minha família não sabia: eu guardava cada cêntimo dos bónus numa conta poupança separada. Nunca lhes contei. Nem aos meus pais, nem ao meu irmão mais velho, o Ricardo, que vivia do outro lado da cidade com a mulher, a Carla, e os dois filhos. Amava a minha família, mas sabia o que aconteceria se descobrissem o meu verdadeiro rendimento. Iam arranjar maneira de gastar tudo. O Ricardo estava sempre a pedir dinheiro.

“Ó Leonor, podes emprestar-me 400 euros? O Tomás precisa de umas chuteiras novas.”

“Leonor, a mãe da Carla precisa de uma cirurgia e nós não temos como pagar tudo.”

Ajudei quando podia com o meu salário normal, mas mantive os bónus em segredo. Em dois anos, juntei quase 150.000 euros. Estava a planear comprar a minha própria casa em breve.

Tudo corria bem, exceto os jantares de família. O Ricardo e a Carla apareciam todos os domingos, e essas refeições eram um suplício. A Carla nunca gostou de mim, e fazia questão que eu soubesse.

“Leonor, o que é essa blusa?”, dizia ela, a olhar para mim como se eu tivesse saído de um caixote do lixo. “Vestes-te como se ainda estivesses no secundário. Não te importas com a aparência?”

O Ricardo ria-se. “A Carla só te quer ajudar, mana. Ela percebe disto.”

O pior era ver a Carla a exibir roupas compradas com o dinheiro que o Ricardo me pedia. Desfilava com um vestido novo de marca, a falar da importância de “investir em peças de qualidade”. Eu costumava fugir para o meu quarto assim que possível, dizendo que tinha trabalho. Ouvia a voz dela a subir as escadas: “Lá vai ela outra vez, esconder-se na sua bolha. Nunca vai crescer se continuar a fugir da vida real.”

Mas eu mantinha a boca fechada e continuava a poupar. Em breve, já não teria de aturar aquilo.

Depois, decidi dar uma pausa e visitei a minha amiga Sofia na casa de campo dela no Alentejo. Quando voltei no domingo à noite, vi demasiados carros no pátio e luzes em todas as janelas. Abri a porta e deparei-me com o caos.

O Tomás e a Matilde corriam pela sala, o Ricardo subia as escadas com caixas, e a Carla comandava tudo como se a casa fosse dela.

“O que se passa aqui?”, perguntei, parada à entrada com a mala.

Todos pararam e olharam para mim. Os meus pais saíram da cozinha com ar culpado.

O Ricardo pousou a caixa. “Olha, mana. Mudámos os planos. Perdi o emprego e não conseguimos pagar a renda.”

Olhei para as caixas e móveis. “Então, vão ficar aqui?”

“Só temporariamente”, disse o Ricardo. “Até arranjar outra coisa.”

A Carla aproximou-se com um sorriso falso. “Agradecemos muito que nos deixes ficar aqui. Claro, vamos ter de fazer alguns ajustes. O teu quarto seria perfeito para as crianças. Podes mudar-te para o quartinho lá ao fundo do corredor.”

“Não vou sair do meu quarto”, disse com firmeza. “Trabalho de casa. Preciso do meu espaço e da internet.”

O sorriso dela desapareceu. “Bem, acho que as necessidades das crianças deviam vir primeiro.”

“E eu sou quem paga a prestação e as contas”, retorqui.

Ela cruzou os braços. “Isso não te dá o direito de seres egoísta. Somos família.”

“Família que nem sequer me perguntou se eu queria mais gente em casa”, respondi.

“Tudo bem”, disse a Carla, quando vi que não ia ceder. “Fica com o teu quarto. Mas não esperes gratidão quando não consegues ser compreensiva com a família.”

Subi as escadas e fechei a porta. Foi o início do pesadelo.

A casa estava sempre barulhenta. O Ricardo passava o dia no sofá, a fazer chamadas preguiçosas para empregos que nunca davam em nada. A Carla agia como se estivesse a fazer-nos um favor. O pior era tentar trabalhar. As crianças batiam à porta e interrompiam as minhas reuniões.

“Podias tentar manter as crianças mais quietas durante o meu horário de trabalho?”, perguntei ao Ricardo numa manhã.

“São crianças, é normal”, disse ele, sem levantar os olhos do telemóvel. “Tu não percebes porque não tens filhos.”

O ponto de rutura chegou dois meses depois. Voltei de umas compras e a internet não funcionava. Fui ver o router e descobri que alguém tinha cortado o cabo Ethernet com uma tesoura. O fio estava limpo, cortado ao meio.

Fiquei furiosa. Desci as escadas com o cabo na mão. “Quem fez isto?”

A Carla estava no sofá, a pintar as unhas. Olhou para o cabo e riu-se. “Ah, isso. O Tomás deve ter pegado nas tesouras e entrado no teu quarto. Crianças são crianças.”

“Isto não tem piada!”, gritei. “Tenho um prazo amanhã!”

“Talvez devesses trancar a porta se és tão preocupada com as tuas coisas”, encolhe”Foi nesse momento que percebi que, por mais que tentasse, nunca seria verdadeiramente valorizada por eles, e decidi que era hora de seguir o meu caminho sozinha.”

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