Melhor história psicológica com narradores não confiáveis

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Entre Sombras e Espelhos

Meu nome é Adriano, tenho 42 anos e, antes de começar, preciso avisar: nem tudo que vou contar pode ser aceito como verdade. Mas também não é mentira. É apenas a forma como eu vejo — ou acho que vejo — as coisas. Talvez você descubra, no fim, o que realmente aconteceu. Ou talvez não.

O Apartamento e as Vozes

Moro sozinho em um apartamento antigo no centro da cidade. As paredes são grossas, mas à noite ouço vozes vindas do apartamento ao lado. Não, não são vozes normais de vizinhos conversando. São sussurros. Sempre dizem meu nome.

“Adriano… Adriano…”

Fui reclamar com a síndica. Ela olhou para mim como se eu fosse louco.

— Mas o apartamento ao lado está vazio há meses, senhor Adriano.

Sorri, para não parecer paranoico. Mas dentro de mim, tive certeza: estão mentindo para mim.

O Diário

Decidi registrar tudo em um caderno. Cada voz, cada sombra, cada detalhe. Porque um dia alguém teria que acreditar em mim.

No início eram apenas anotações simples:

“2h13 da manhã — ouvi passos no corredor. Um homem assobiava. Não havia ninguém.”

Com o tempo, os registros se tornaram mais longos, quase como confissões. Eu escrevia sobre a sensação de ser observado, sobre o cheiro de cigarro que vinha do quarto vizinho, embora ninguém morasse lá.

Minha terapeuta, doutora Lígia, dizia que eu precisava separar realidade de imaginação. Ela sugeriu que eu levasse o diário às sessões. Fiz isso uma vez. Ela leu em silêncio e, no fim, apenas disse:

— Adriano, você confia na sua percepção?

Respondi que sim. Claro que sim. Mas a forma como ela me olhou… parecia que estava me analisando como um objeto estranho.

O Espelho

Certa noite, enquanto escovava os dentes, percebi que meu reflexo no espelho demorou um segundo a mais para se mover. Foi rápido, quase imperceptível, mas eu vi.

Depois disso, passei a observar o espelho com atenção. Quanto mais olhava, mais percebia pequenas discrepâncias: um piscar de olhos atrasado, um sorriso que surgia sem eu sorrir.

Escrevi no diário: “O reflexo não sou eu. Ele está tentando se passar por mim.”

Contei isso à doutora Lígia. Ela fez anotações, mas não comentou nada. Quando insisti, ela disse:

— Talvez o espelho represente uma parte de você que ainda não aceita.

Mas como pode representar, se ele se move sozinho?

O Vizinho Invisível

No início pensei que fosse imaginação, mas comecei a ouvir claramente o som de móveis sendo arrastados no apartamento vazio. Certa madrugada, decidi bater na porta. Nenhuma resposta. Coloquei o ouvido na madeira e ouvi passos se afastando.

No dia seguinte, ao voltar do trabalho, encontrei um bilhete debaixo da minha porta:

“Pare de observar.”

Mostrei o bilhete à síndica. Ela disse que não havia câmeras naquele andar e que ninguém poderia ter deixado aquilo. Mas eu sabia. Ele — o vizinho invisível — queria me enlouquecer.

A Mulher de Vermelho

Um detalhe importante: comecei a ver uma mulher de vestido vermelho no corredor do prédio. Sempre de costas, caminhando devagar. Quando eu tentava alcançá-la, ela virava a esquina e sumia.

Escrevi sobre ela dezenas de vezes. Até que um dia, durante uma sessão, a doutora Lígia perguntou:

— Adriano, e se a mulher de vermelho não existir?

Respondi rindo:

— Engraçado você dizer isso, doutora. Porque ontem à noite, eu a vi entrando no seu consultório.

O silêncio que seguiu foi pesado.

As Lembranças Fragmentadas

Com o tempo, memórias estranhas começaram a voltar. Eu me lembrava de estar em outro lugar, em outro prédio, conversando com outra doutora. Mas sempre que tentava organizar essas lembranças, algo me impedia. Era como se minha mente tivesse duas versões da mesma história.

Às vezes penso: e se tudo isso — a mulher de vermelho, o vizinho, até a doutora — for apenas invenção da minha mente?

Mas então lembro do bilhete. O bilhete é real. Eu o guardo na gaveta, posso mostrá-lo a quem quiser.

O Dia da Ruptura

Foi numa terça-feira. O elevador estava quebrado, então precisei descer pelas escadas. No terceiro andar, vi a mulher de vermelho parada, de frente para mim. Pela primeira vez, seu rosto estava visível.

Era o meu rosto.

Ela sorriu e disse:

— Você já sabe quem sou.

Corri, tropecei, caí alguns degraus. Quando levantei, não havia ninguém.

Escrevi no diário, desesperado: “A mulher sou eu. Mas não posso ser eu. Porque se for, quem está escrevendo agora?”

O Último Encontro com a Doutora

Na sessão seguinte, entreguei o diário para Lígia. Ela leu algumas páginas e depois me disse:

— Adriano, estou preocupada.

— Por quê? — perguntei.

Ela hesitou.

— Porque você já me trouxe este mesmo diário antes.

Fiquei em silêncio. Era impossível. Eu tinha acabado de escrever aquelas páginas.

Abri o caderno. Mas não estavam as minhas palavras. Eram desenhos. Desenhos de olhos, espelhos, portas fechadas. Nenhuma frase.

Senti o mundo girar.

— Você mexeu no meu diário — acusei.

Ela negou. Disse que aquilo sempre estivera ali.

Saí do consultório sem me despedir.

O Desfecho

Agora estou aqui, no meu apartamento, escrevendo este relato. Mas já não sei se é no diário ou apenas na minha cabeça. Talvez alguém leia um dia. Talvez já tenham lido antes.

As vozes voltaram. Estão mais fortes. Chamam meu nome, pedem que eu olhe para o espelho.

Olho. E vejo a mulher de vermelho sorrindo para mim.

Ela escreve ao mesmo tempo que eu. Nossas palavras se confundem.

Talvez eu seja apenas o reflexo. Talvez Adriano nunca tenha existido.

Epílogo Incerto

Se você leu até aqui, peço que decida por mim:
Estou descrevendo minha vida ou minha loucura?

E se eu não sou o narrador dessa história, quem está escrevendo agora?

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