História de ficção psicológica sobre identidade e autodescoberta

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Fragmentos de Mim

O relógio da sala marcava 3h47 da manhã quando Helena acordou de sobressalto. O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelo som ritmado do ponteiro, mas dentro dela havia um turbilhão. O sonho voltava sempre: um corredor sem fim, portas fechadas dos dois lados, e no fundo, um espelho embaçado que nunca conseguia atravessar.

Helena tinha 34 anos, era psicóloga e, ironicamente, passava os dias ajudando pessoas a compreenderem suas próprias angústias, enquanto ela mesma se sentia perdida dentro de si.

A Vida em Fragmentos

Por fora, tudo parecia normal. Morava em um apartamento aconchegante em São Paulo, tinha uma carreira respeitada e amigos que a consideravam confidente. Mas, por dentro, Helena carregava uma sensação de vazio, como se algo essencial estivesse faltando.

Certa manhã, enquanto caminhava até a clínica, viu seu reflexo no vidro de uma loja. Parou por alguns segundos. Reconhecia o rosto, os traços herdados da mãe, mas ao mesmo tempo parecia olhar para uma estranha.

— Quem é você? — murmurou, quase sem perceber.

O Diário Esquecido

Dias depois, ao visitar a casa antiga da família no interior, Helena encontrou uma caixa de madeira no sótão. Dentro dela, havia um diário encadernado em couro, coberto de poeira. Ao abri-lo, reconheceu a caligrafia da mãe, que havia falecido quando ela tinha apenas doze anos.

“Sei que um dia Helena vai ler estas páginas. Talvez ela não se lembre de quem realmente é, mas espero que aqui encontre respostas.”

O coração dela acelerou. Passou a noite lendo aquelas palavras. Descobriu que sua mãe escrevera não apenas sobre a infância de Helena, mas também sobre segredos familiares: mudanças bruscas, nomes que nunca tinham sido mencionados, e um enigma que a deixava confusa — referências a uma “vida anterior” de Helena, como se ela tivesse sido duas pessoas diferentes antes dos doze anos.

As Primeiras Dúvidas

Naquela semana, Helena voltou para a cidade em estado de choque. Lembranças da infância começaram a surgir em flashes desconexos: uma casa diferente, uma voz masculina chamando por outro nome que não era Helena.

Em suas consultas com pacientes, ela se pegava divagando. Será que toda a sua identidade fora construída sobre um segredo?

Conversou com sua tia, a única parente viva próxima.

— Tia Clara… a mamãe escreveu no diário que minha infância foi dividida. O que ela quis dizer com isso?

A mulher ficou em silêncio, desviando o olhar. Depois de alguns segundos, murmurou:

— Nem tudo precisa ser lembrado, Helena. Algumas verdades pesam mais do que ajudam.

Aquilo só aumentou sua angústia.

O Espelho

O sonho do corredor voltou com mais força. Mas dessa vez, Helena conseguiu chegar até o espelho. Ao encostar nele, não viu apenas seu reflexo, mas uma criança de cabelos curtos, com olhar assustado. A menina lhe disse:

— Você não é Helena.

Ela acordou chorando, sentindo que algo estava prestes a se romper dentro dela.

A Terapia Invertida

Decidiu, então, procurar um terapeuta para si mesma. Escolheu o doutor Augusto Faria, especialista em memória e identidade.

Nas primeiras sessões, mal conseguia falar. Mas aos poucos, começou a descrever os sonhos, o diário da mãe e a sensação de ser uma impostora na própria vida.

— A mente tem maneiras curiosas de esconder traumas — disse Augusto. — Talvez parte da sua identidade tenha sido construída como defesa. O que precisa entender é: o que está tentando proteger?

Helena saiu da consulta ainda mais inquieta, mas determinada. Precisava investigar sua própria história.

As Pistas do Passado

Ela começou a revisitar lugares da infância. Foi até uma antiga escola no interior e perguntou por registros de alunos. Descobriu que, até os dez anos, havia sido matriculada com outro sobrenome: Helena Duarte, não Helena Valério, como acreditava.

O choque foi profundo. Sua própria certidão parecia uma mentira.

Mais lembranças fragmentadas surgiram: um homem alto, gritos à noite, uma mala sendo arrastada às pressas.

Decidiu confrontar sua tia novamente.

— Por que meu nome foi mudado? Quem era o homem que eu lembro?

A tia, cansada de resistir, finalmente contou:

— Seu pai biológico não era o homem que você conheceu como pai. Ele… ele foi acusado de um crime grave e desapareceu. Sua mãe quis proteger você, dar-lhe um novo começo.

Helena sentiu o chão sumir. Sua identidade inteira era um mosaico construído sobre silêncios e medos.

O Confronto Interior

A revelação trouxe um misto de raiva e alívio. Raiva por ter vivido uma vida de segredos, alívio por finalmente entender o vazio que sempre sentira.

Mas também surgiu uma pergunta: se sua história havia sido forjada, quem era ela de verdade?

Nas semanas seguintes, mergulhou em sessões intensas de terapia. Revivia lembranças, chorava, confrontava a si mesma no espelho. O processo era doloroso, mas necessário.

Descobriu que sua busca não era apenas pelo passado, mas pela aceitação de que poderia ser múltipla: filha da mãe que a criou, criança que fora um dia, mulher que agora escolhia seu próprio caminho.

A Jornada de Autodescoberta

Helena decidiu escrever um novo diário, como sua mãe havia feito. Mas, em vez de registrar apenas fatos, escrevia reflexões sobre quem estava se tornando.

“Não sou apenas Helena Valério nem Helena Duarte. Sou todas as minhas versões. Sou o medo da criança, a força da mulher e o silêncio da adolescente perdida. Estou me reconstruindo, peça por peça.”

Com o tempo, passou a olhar o espelho sem estranhamento. Ainda via fragmentos, mas agora conseguia uni-los em um todo.

Epílogo: Reconciliação

Meses depois, Helena voltou ao sótão onde tudo começara. Releu o diário da mãe, mas desta vez sem desespero. Sentia-se grata, pois compreendia que sua mãe havia feito o possível para protegê-la.

De pé diante da janela, deixou o vento tocar seu rosto e murmurou:

— Agora sei quem sou. Não por causa do passado, mas porque escolhi ser inteira.

E, pela primeira vez em muitos anos, sentiu paz.

Reflexão Final

A história de Helena mostra que a identidade não é fixa, mas um mosaico de memórias, dores e escolhas. A autodescoberta é um processo doloroso, mas também libertador. O verdadeiro “eu” não está escondido em documentos ou segredos, mas na coragem de enfrentar as sombras internas e aceitar todos os fragmentos que nos compõem.

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