**Diário de Mariana**
Nasci cega num mundo que valoriza a beleza acima de tudo. Minhas duas irmãs, Matilde e Beatriz, eram admiradas pelos seus olhos verdes e corpos esguios, enquanto eu era tratada como um fardo, um segredo vergonhoso trancado no quarto mais escuro da casa.
Minha mãe morreu quando eu tinha apenas cinco anos, e desde então, meu pai tornou-se amargo e cruel—especialmente comigo. Nunca me chamou pelo nome, apenas de “aquela coisa”. Não me queria à mesa durante as refeições, nem perto quando havia convidados. Acreditava que eu estava amaldiçoada. Quando completei vinte e um anos, ele tomou uma decisão que partiu o que restava do meu coração já tão quebrado.
Naquela manhã, ele entrou no meu quarto, onde eu passava os dedos sobre os pontos de um livro em Braille já gasto. Jogou um pedaço de tecido dobrado no meu colo.
—Vais casar amanhã — disse, sem emoção.
Congelei. As palavras não faziam sentido. Casar? Com quem?
—Ele é um mendigo que vive na igreja. És cega, ele é pobre. Um bom partido para ti.
Senti o sangue abandonar o meu rosto. Quis gritar, mas nenhum som saiu. Nunca tive escolha. Meu pai nunca me deu nenhuma.
No dia seguinte, casei-me numa cerimónia rápida e humilde. Claro que nunca vi o seu rosto, e ninguém o descreveu para mim. Meu pai empurrou-me na direção dele e ordenou que segurasse o seu braço. Obedeci, como um fantasma dentro do meu próprio corpo. As pessoas riam baixinho, sussurrando: “A cega e o mendigo.”
Depois da cerimónia, meu pai entregou-me um saco com roupas e empurrou-me novamente para o desconhecido.
—É problema teu agora — disse, afastando-se sem olhar para trás.
O mendigo, que se chamava Tiago, guiou-me em silêncio até uma cabana à beira da vila. Cheirava a terra molhada e a fumo de lenha.
—Não é muito — murmurou ele. — Mas estarás segura aqui.
Sentei-me no velho tapete, segurando as lágrimas. Esta era a minha vida agora. Uma rapariga cega, casada com um mendigo, numa cabana feita de barro e esperança.
Mas algo estranho aconteceu naquela primeira noite.
Tiago preparou-me chá com mãos delicadas. Deu-me o seu próprio casaco e dormiu junto à porta, como um cão a guardar a sua rainha. Falava comigo como se eu importasse—perguntou que histórias eu gostava, que sonhos tinha, que comidas me faziam sorrir. Ninguém nunca me perguntara tais coisas.
Os dias viraram semanas. Todas as manhãs, Tiago levava-me até ao rio, descrevendo o sol, os pássaros, as árvores com tanta poesia que eu começava a senti-los através das suas palavras. Cantava enquanto eu lavava roupa e contava histórias de estrelas e terras distantes à noite. Rí pela primeira vez em anos. O meu coração começou a abrir-se. E naquela cabana humilde, algo inesperado aconteceu: apaixonei-me por ele.
Numa tarde, enquanto procurava a sua mão, perguntei:
—Sempre foste mendigo?
Ele hesitou, então respondeu suavemente:
—Nem sempre.
Mas não explicou mais. E eu não insisti.
Até ao dia em que tudo mudou.
Fui sozinha ao mercado comprar legumes. Tiago dera-me indicações precisas, e eu memorizei cada passo. Mas no caminho, alguém agarrou o meu braço com força.
—Rata cega! — cuspiu uma voz.
Era Matilde, minha irmã.
—Ainda viva? A fingir que és mulher de um mendigo?
As lágrimas ameaçaram cair, mas mantive-me firme.
—Sou feliz — disse.
Ela riu com crueldade.
—Nem sabes como ele é. É lixo. Tal como tu.
Depois sussurrou algo que me partiu ao meio:
—Ele não é mendigo, Mariana. Mentiu-te.
Voltei para casa confusa. Esperei até à noite, e quando Tiago regressou, perguntei-lhe novamente, desta vez com firmeza:
—Diz-me a verdade. Quem és realmente?
Ele ajoelhou-se diante de mim, segurou as minhas mãos e disse:
—Não era para saberes ainda. Mas já não posso mentir-te.
O meu coração batia forte.
Ele respirou fundo.
—Não sou um mendigo. Sou filho do Duque.
O mundo girou à minha volta. “Filho do Duque.” A minha mente recuou sobre cada momento que partilháramos—a sua gentileza, a sua força, as suas histórias demasiado ricas para um simples mendigo—e de repente tudo fez sentido. Nunca fora um mendigo. Meu pai casara-me não com um pobre, mas com um nobre disfarçado de andarilho.
Afastei as mãos, a voz tremia:
—Porquê? Porque me fizeste acreditar que eras um mendigo?
Tiago levantou-se, a voz calma mas carregada de emoção.
—Porque queria alguém que me visse—não a minha riqueza, não o meu título. Só a mim. Alguém puro. Alguém cujo amor não pudesse ser comprado. Tu eras tudo o que eu rezara para encontrar, Mariana.
O meu coração lutou entre a raiva e o amor. Porque não me contara? Porque me deixara sentir como lixo abandonado?
Tiago ajoelhou-se novamente.
—Nunca quis magoar-te. Vim disfarçado porque estava cansado de mulheres que amavam o título, não o homem. Depois ouvi falar de uma rapariga cega, rejeitada pelo próprio pai. Observei-te durante semanas antes de me aproximar dele disfarçado. Sabia que ele aceitaria, porque queria livrar-se de ti.
Lágrimas rolaram pelas minhas faces. A dor da rejeição do meu pai misturava-se com o choque da verdade de Tiago. Sussurrei:
—E agora? O que acontece agora?
Ele apertou a minha mão com ternura.
—Agora vens comigo—para o meu mundo, para o palácio.
O meu coração saltou.
—Mas sou cega. Como posso ser uma duquesa?
Ele sorriu.
—Já o és, minha princesa.
Na manhã seguinte, uma carruagem real esperava diante da nossa cabana. Guardas vestidos de negro e ouro curvaram-se perante nós. Segurei o braço de Tiago com força enquanto a carruagem avançava em direção ao palácio.
Quando chegámos, a multidão suspirou. O príncipe perdido regressara—mas com uma rapariga cega ao seu lado. A Duquesa observou-me com olhos penetrantes. Eu inclinei-me humildemente. Tiago permaneceu firme ao meu lado e declarou:
—Esta é a minha esposa—a mulher que eu escolhi. A mulher que viu a minha alma quando mais ninguém podia.
A Duquesa ficou em silêncio por um momento, depois avançou e abraçou-me.
—Então ela é minha filha—disse.
Quase desmaiei de alívio. Tiago sussurrou:
—Eu disse-te que estarias segura.
Naquela noite, junto à janela do palácio, ouvi os sons da corte. A minha vida mudara num só dia. Já não era “aquela coisa” escondida. Era uma esposa, uma duquesa, uma mulher amada não pela beleza, mas pela alma.
Mas sabia que as sombras permaneciam—o ódio do meu pai, os murmúrios da corte. Pela primeira vez, porém, senti-me forte.
E, assim, entre os murmúrios da corte e o amor de Tiago, aprendi que a verdadeira visão não está nos olhos, mas na coragem de quem sabe amar sem limites.







