Na sala dos médicos, o ar era denso e pesado, impregnado do cheiro agridoce de café queimado e de nervos à flor da pele. O ambiente parecia saturado, como um caldo espesso de noites sem dormir, alarmes de monitores e um desespero silencioso. Marta Alves, uma mulher de corpo robusto e rosto marcado por anos de rigor profissional, mexia lentamente o açúcar na sua caneca enorme, a terceira daquela madrugada. Seus dedos, habituados à precisão de seringas e soros, moviam-se automaticamente.
— Em dez anos nesta cirurgia, pensei que já tinha visto de tudo — disse ela, sem olhar para a jovem auxiliar, Joana. — Mas um cirurgião-chefe a trazer a filha para o trabalho? Isso é novidade.
Joana, cujos olhos ainda brilhavam com o entusiasmo recém-saído da escola de enfermagem, suspirou com compaixão. O seu avental parecia demasiado grande, como se ainda não tivesse crescido para aquela função.
— O que é que ele faria, Marta? A Sofia… — Joana hesitou, procurando as palavras certas. — …arrumou as malas e foi-se embora. Dizem que foi para o tal sócio de negócios. E a Carlota ficou sozinha. O Dr. Eduardo está dividido entre a sala de operações e a filha.
— Dividido — resmungou Marta, mas sem ironia. Havia apenas cansaço e uma sabedoria conquistada com anos de experiência. — Talentoso como ninguém. Mãos de ouro. Salva quem outros já desistiram. Mas na vida… acontece-lhe isto. Já está cá há três semanas com a menina. Por sorte, a Carlota é tranquila, quietinha como um rato. Fica no cantinho a desenhar.
As duas calaram-se, olhando para os respetivos cafés. Pensavam no mesmo homem: o Dr. Eduardo. O seu nome ecoava pelos corredores do hospital, envolto em lendas, especialmente depois de ter aceitado o caso que todos consideravam perdido — a paciente do quarto sete.
— E a milionária? Continua igual? — perguntou Joana, baixando o instintivamente a voz.
— Igual. Estável, mas grave. A Beatriz… — Marta abanou a cabeça. — Um nome bonito. Rainha. Dizem que era uma mulher forte, cheia de vida. Depois do ataque… Os outros médicos lavaram as mãos, mas o Dr. Eduardo agarrou-se a ela como um cão fiel. Arrancou-a das garras da morte. Agora não a larga, como se temesse que ela desapareça se ele virar as costas.
Joana espreitou para o corredor vazio. Num cantinho improvisado, uma menina de tranças escuras desenhava com concentração intensa, alheia ao bulício do hospital.
— A Carlota é um anjo. Tão inteligente, nunca incomoda. Dá pena vê-la assim.
— E o marido da Beatriz? — perguntou Marta, com uma ponta de desconfiança. — O Ricardo. Aparece, fica dez minutos com cara de tédio, e vai-se embora. Dizem que é mais novo que ela, uns dez anos. Friorento como um inverno no Norte.
A porta abriu-se com um rangido, e lá estava o Dr. Eduardo, alto, curvado, com a bata outrora impecável agora amarrotada. A barba por fazer cobria-lhe o rosto cansado, mas os olhos brilhavam com uma determinação feroz.
— Marta, Joana — a voz, normalmente suave, soava rouca de cansaço, mas firme. — Preparem-se. A nossa paciente do quarto sete… houve um sinal. As pálpebras mexeram.
Virou-se e saiu antes que respondessem. As enfermeiras trocaram um olhar. O ar cheirava a tempestade. A esperança.
No cantinho da Carlota, a menina acabara de pintar um vestido roxo para a princesa do desenho quando um homem entrou na sala de espera. Era aquele senhor que visitava a tia adormecida. O telemóvel saiu do bolso, e o seu rosto, antes calmo, contorceu-se de raiva.
— Até quando é que isto vai demorar? — sibilou ao telefone. — Não paguei para que aquele médico de pacotilha fizesse experiências! Ela devia ter… Faça alguma coisa! Não vou esperar para sempre!
Carlota recuou, assustada. Não percebeu tudo, mas o ódio naquela voz gelou-lhe o sangue. Aquele homem odiava o seu pai. O pai que não dormia para salvar a tia. Um nó apertou-lhe a garganta.
Mais tarde, quando as enfermeiras saíram, Carlota espreitou para o quarto sete. A senhora na cama era pálida como os lençóis, cheia de tubos, mas parecia só estar a dormir.
— Carlotinha, não podes entrar aqui — Joana puxou-a suavemente para trás.
Enquanto isso, Beatriz lutava na escuridão. Onde estava o Ricardo? Porque não a segurava, não a chamava de volta? Um som atravessou o vazio — uma voz infantil, suave como um sino. Era uma menina. Se havia crianças ali, aquilo era a vida. Ela precisava de voltar.
O esforço foi como um soco no peito. A luz explodiu nos seus olhos. O Dr. Eduardo estava ali, sério, firme.
— Beatriz, ouve-me? Estás no hospital. Estás segura.
— O que… aconteceu?
— Três semanas em coma. Traumatismo craniano, fraturas. Lembras-te de algo?
— Lembro de sair do carro. Depois… escuridão.
Quando Ricardo entrou, ela esperou um abraço, um alívio. Ele tocou-lhe no ombro com frieza.
— Acordaste. Os médicos dizem que vais melhorar.
— Ricardo… — a voz dela tremia.
— Desculpa, tenho uma chamada importante — cortou ele, tirando o telemóvel.
Ele saiu, falou baixo, e voltou.
— Bia, tenho de ir. Negócios. Estás em boas mãos.
E foi-se embora. Beatriz viu a porta fechar-se, e o gelo invadiu-a. Porque é que ela estava ali, num hospital público, quando podia estar na melhor clínica do mundo?
Uma frase veio-lhe à mente, como se tivesse ouvido antes: *”Eu fingia estar morta se fosse ela, para ele mostrar quem realmente é.”*
— Doutor — fitou o Dr. Eduardo com firmeza. — Preciso que me ajude numa mentira. Diga ao meu marido que morri.
— Absurdo! — ele recuou. — Sou médico, não ator!
— Por favor! — implorou ela. — Preciso da verdade. Sinto que há algo horrível aqui.
Ele hesitou. Viu nela a mesma dor que sentira quando a sua mulher o deixou. Acenou com a cabeça.
— Uma só vez.
No dia seguinte, o Dr. Eduardo encarou Ricardo no corredor.
— Lamento muito. Ela… faleceu há uma hora. Complicações. Não havia nada a fazer.
Ricardo ficou imóvel. Depois, entrou no quarto, tocou no ombro dela com desdém… e riu. Um riso triunfante, sem som.
— Bebé! Sim, sou eu! — sussurrou ao telemóvel. — Morreu! Finalmente! Estamos livres! Agora é tudo nosso!
Quando se virou, o Dr. Eduardo estava na porta. Pálido. Ricardo olhou para a cama.
Beatriz estava sentada, o telemóvel na mão, a gravação terminada.
— Tu… — ele engasgou-se. — Mentira! Vou destruir-te!
Saiu a correr.
— Não o deixem fugir! — gritou o médico.
— Não vale a pena — disse Beatriz, fria. — A polícia já trata disso.
OE, meses depois, no jardim da sua nova casa à beira-mar, Beatriz sorriu ao ver Eduardo e Carlota brincando na areia, sabendo que a verdadeira felicidade não estava no dinheiro, mas naquela família que o destino lhe trouxera entre lágrimas e mentiras.







